Diogo C. Nunes*
No emblemático poema Aos que virão depois de nós, Brecht nos oferece os seguintes versos:
"Realmente, vivemos tempos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar”.
A expressão “tempos sombrios”, daí colhida por Hannah Arendt para caracterizar um tempo de “ultraje pela injustiça” e de desespero, deve ser pensada menos como adjetivação de um particular contexto histórico – “não constituem uma raridade na história”, ela nos diz – que determinados modos de como alguns sujeitos compreenderam e lidaram com seus tempos presentes.
Ainda que em Homens em tempos sombrios Arendt empregue o termo para tratar do “tempo histórico” correspondente à primeira metade do século XX, as sombras não são propriedades objetivas seja de um “tempo”, seja de uma “história”, que possam ser pensados sem sujeitos, ou seja, sem afetos. Os “tempos sombrios” são aqueles em que a desesperança se impõe e em que, exatamente por isso, a esperança, frágil e vacilante, deve ser conquistada – ou, nos termos de Ernst Bloch, “aprendida”.
O termo em questão tem reencontrado vigor neste momento em que a fantasia da estabilidade das instituições democráticas parece não suportar mais nenhuma crítica contundente ou efetiva ao estado de coisas. Nenhuma denúncia e nenhum aviso provocam qualquer efeito consistente não porque não haja quem os ouça, compreenda e por eles se mobilize, mas porque já não são mais capazes de esconder seu débito com aquela crença “inocente” num curso “natural” da história que, pedra de toque da ideologia neoliberal, disfarçava a exceção de “normalidade”.
Lembrando Benjamin, na sua 8ª tese Sobre o conceito de história, deveríamos nos espantar não com o que acontece, mas com o “espanto” que muitos demonstram ter com os ocorridos. Quase um século depois, talvez fosse o caso de sequer nos espantarmos mais com tais espantos. Também ali nas “teses” Benjamin havia dito que, da perspectiva dos vencidos, “a exceção é a regra”. O encontro do espanto com a desesperança denuncia que expectativas foram montadas sobre a ideologia, compartilhando da “perspectiva” dos vencedores. Assim sendo, a urgência é a de “fundar um verdadeiro estado de emergência”, despidos de qualquer otimismo ingênuo.
Se é somente em nome dos desesperançados que a esperança nos é dada, então é hora de compreendermos a frase adorniana que diz que a ocasião da utopia é quando parece perdido o instante da sua realização. Não é outro o seu momento oportuno que aquele em que não vemos saídas em meio ao breu. Isso porque a esperança é como um relâmpago: ilumina ao mesmo tempo em que dá profundidade à escuridão. Não se trata de desvio da realidade, mas de mergulho na sua complexidade em direção a seus pontos de fuga que são, a rigor, pontos cegos. Não há esperança sem coragem, conquanto ela seja seu ímpeto. Não temer a escuridão, eis o imperativo da espera,
“porque é preciso...
pensar o futuro
como vagalumes
A luz é pouca,
mas eles sabem
para onde estão indo”[1].
Texto originalmente publicado como Editorial da revista Alumni, n. 12, 2018.
[1] Poema Porque é preciso... , de Jorge Coelho Soares, escrito na manhã do dia 29/10/2018.
* Diogo C. Nunes é historiador, mestre e doutor em Psicologia Social. Professor do curso de Psicologia da UNIABEU Centro Universitário e assessor pedagógico da ENSP/Fiocruz.
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