Diogo C. Nunes*
Ao menos desde 2018, quando se evidenciavam não somente as intenções (diga-se logo, fascistas), mas a força brutal da “nova” direita brasileira, parte da esquerda tomou o antigo slogan (originalmente espanhol, ao que consta) “o fascismo não passará” como modo de articular, ao menos verbalmente, sua dita “resistência” aos avanços da direita. (Talvez o slogan tenha sido recuperado, no Brasil, pela direita, quando o banqueiro Claudio Pracownik, que foi fotografado em manifestação pelo impeachment de Dilma Rousseff tendo levado a babá para cuidar de seus filhos, respondeu a críticas nas redes sociais com um texto cuja epígrafe foi "Sí Pasarán!”. Mas essa já seria outra conversa...).
Pois bem, na sua versão neoliberal, a “resistência ao fascismo” não lembra muito a espanhola e a italiana – para retomar ao menos duas situações, historicamente importantes, em que os termos “resistência” e “não passarão” foram usados. Isso porque, pacifista convicta, a resistência neoliberal prefere acreditar que as “armas” capazes de derrotar o fascismo são outras que não as bélicas: a poesia, o amor, as urnas (mesmo que não saibamos exatamente o que sejam poesia, amor e tampouco urnas). Um “resistente ao fascismo” de hoje não titubearia em repreender um partigiano: não se combate violência com violência, ele diria. Talvez aqueles que penduraram Mussolini de cabeça pra baixo em praça pública estivessem por demais consumidos pelo ódio. Teriam eles se convertido nos seus inimigos?
Não cabe aqui avaliar as possíveis causas da crença, por parte da esquerda, na poesia, no amor e na democracia como armas de enfrentamento ao fascismo. Quero chamar atenção a duas situações. Eis a primeira: a Mídia Ninja, importante veículo desta esquerda a qual me refiro, publicou no dia 24/10 um vídeo de uma manifestação, de apoiadores de Lula, no Rio Grande do Norte, com o seguinte título: “Não vão nos intimidar”. O texto em subtítulo diz o seguinte: “carreata é interrompida após tiros”. Um leitor minimamente atento não poderá deixar de se perturbar com a contradição, que deve ser entendida aqui na chave da propaganda: “não irão nos intimidar, mas estão nos intimidando” é o que está dito na chamada, mas, como peça publicitária, gostaria de dizer: o amor (nosso lado) vencerá a violência (o lado deles). A posição da esquerda hoje parece ser: estão atirando contra nós, mas seguiremos resistindo (levando tiros?) até que... bem, até que vençamos nas urnas (ainda que um tanto de nós morra até lá)!
O grande perigo desta orientação, a despeito da sua decadência (pois a luta contra o ódio tomou lugar, ao menos no horizonte próximo, da luta contra as formas de opressão impregnadas no Estado de Direito e, mais radicalmente, da luta contra o imperialismo e contra a sociedade de classes), junto à submissão ao paradigma publicitário, com a tentativa de conversão dos afetos em armas (ao que parece, o “agir” está submetido ao, ou trocado pelo, “sentir”), é que ele finge não perceber algo que seria óbvio: não se vence o fascismo nas urnas. E aqui aparece o que anunciei como segunda situação: a verdade contida no slogan “não passará”. Como um ato-falho, sabemos que “o fascismo não passará”, independente de quem saia “vitorioso” na eleição presidencial. Como uma resposta genuína às violências do processo civilizatório, o fascismo se faz de adormecido, por vezes, mas não passa. Como sintoma, por excelência, da cultura moderna ocidental, o fascismo não passará enquanto não passar, com ele, toda a estrutura material e simbólica que edifica nosso modo de viver. Não duvido da força e da importância dos afetos e da poesia para que “tudo isso passe”, ainda que eu não saiba bem o que são (o amor, a poesia e tudo isso). Mas também não duvido da impossibilidade de uma transformação efetiva por via de slogans, cinismos e negações.
Pós-escrito:
Um dia antes de escrever este pequeno texto, ouvi de uma pessoa “50% mais 1 já me basta”. Eu, de pronto, respondi “Talvez seja mais fácil vencer esse maldido no dia 30 que... [fiz alguns gestos, sem saber que palavras usar]... que todo o resto”. Ele, me entendendo, replicou: “Mas isso fica pra depois”. Talvez parte desta esquerda não acredite realmente que o fascismo possa ser derrotado em uma eleição, mas me parece ansiosa para comemorar “a vitória” eleitoral. Talvez ela seja mesmo o que resta, mediante nossa quase total escassez de fantasias e sonhos.
* Diogo C. Nunes é historiador, mestre e doutor em Psicologia Social; assessor pedagógico da ENSP/Fiocruz.
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