Marcelo Fonseca*
O principal agente de massificação é a tecnologia da imagem, na medida em que esta produz e reproduz o semelhante enquanto escopo imaginário da coisa visual, gerando, por um processo de identificação, a massa.
Para desenvolver essa reflexão, apoiamo-nos na concepção de Adorno e Horkheimer de que a massa só existe enquanto efeito da mercadoria cultural. Entendemos, ainda, que é esta lógica – de espelhamento da mercadoria pela massa através da imagem midiática – que, desdobrando-se em discurso do corpo, funda a "nova aura" exatamente na instância em que Walter Benjamin julgara ser o de sua perda, qual seja, a reprodutibilidade técnica da arte. Por fim, concluímos que, nesta perspectiva, o corpo deixa de ser um produto biológico "original e autêntico" para ser o que de fato é na fase atual do capitalismo: um produto inscrito na mesma ordem que a mercadoria.
Aura e Reprodutibilidade Técnica
No capítulo A Indústria Cultural: O Esclarecimento como Mistificação das Massas, Adorno e Horkheimer (2006) analisam os efeitos da racionalidade técnica enquanto ferramenta do capital, tendo diante de si a cena cultural norte-americana da segunda guerra. Sua análise dos efeitos dos produtos da indústria cultural contém uma crítica implícita ao otimismo expresso de Walter Benjamin em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1994). Para Benjamin, a arte reprodutiva – serial – ampliou o espectro de público da arte e, com isto, também ampliou o seu poder de transformação social. A serialidade da arte reprodutiva também trouxe consigo a eliminação da aura que cercava a obra de arte tradicional, única. Benjamin define aura nos seguintes termos:
...uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho (BENJAMIN, 1994, p. 170).
O fato de a obra de arte ser única dotava-a de uma qualidade análoga a de uma aparição “real” no tempo e no espaço, de uma aura. Poder-se-ia, então, dizer que a aura nascia da naturalização da obra de arte no plano de sua corporeidade. Nesta perspectiva, o valor da obra residia na figura mesma de seu corpo. Neste sentido, o caráter único das obras era o principal indexador de seu valor. O culto à fisicalidade da obra mascarava outro valor, que é o valor intrínseco das obras de arte, qual seja, o valor determinado por sua fruição estética.
Para Benjamin, na arte reprodutiva dar-se-ia o inverso. O original não existe, quando muito ele foi convertido em protótipo da série. Assim, enquanto dado físico, o que existe é a série cujo valor é determinado exatamente pela sua ampla disponibilidade. É o princípio da produção industrial avançando para a esfera da produção artística. Benjamin entende que a arte reprodutiva inverte a dissimetria dos valores a partir dos quais a arte tradicional era apreendida, ou seja, entende que, uma vez diluído o valor do objeto na multiplicidade, amplia-se o valor de exibição da obra, isto é, o valor de sua fruição estética. Benjamin entendeu, portanto, a reprodutibilidade técnica como a democratização da arte e, sobretudo, da experiência estética.
Bem no espírito vanguardista do princípio do século passado e influenciado pelo Marx dos Manuscritos Econômico-Filosóficos (2004), Benjamin deduziu que a ampliação do espectro de público da arte pela reprodutibilidade técnica implicava a ampliação de seu poder de subversão e transformação social. É, porém, num momento anterior da obra de Benjamin que se encontram as bases sobre as quais se pode determinar o que ele entendia ser o poder de subversão da arte. Em sua primeira tese, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (BENJAMIN, 1999), a obra de arte é definida como entrelugar, entendido como núcleo de uma operação de reflexão. Para ele, segundo sua leitura dos primeiros românticos, a obra de arte constitui o entrelugar em que o texto pressiona o contexto na reflexão enquanto lugar do sujeito. Na operação de reflexão o sujeito se representa na medida em que o espectador desdobra a reflexão da obra.
É nessa base que Benjamin define a crítica de arte – entendemos nós que se trata de toda leitura que reconheça a obra de arte no plano de sua significação: a experiência estética plenamente realizada. Isto implica a consideração da inclusão do espectador na obra, que ao representar-se como sujeito conclui a bordadura que constitui a obra para além de seu limite formal, destituindo-a, por assim dizer, de sua materialidade para considerá-la no âmbito de sua significação, isto é, no âmbito do discurso. Assim, se a obra produz o entrelugar, é só na sua diluição reflexiva levada a cabo pelo espectador que ela se conclui enquanto arte.
Exatamente por causa desse caráter ativo do espectador evitamos a utilização do termo "recepção" para caracterizar a fruição da obra de arte, porque, na esteira da reflexão benjaminiana, consideramos que se o espectador é, sem dúvida, o "destinatário" da obra, ele só o é se se inclui por uma operação reflexiva na obra. Esta operação é que conclui a obra de arte. Assim, concluir a obra é dar a ela o lugar de arte por se representar como sujeito a partir dela, desdobrando-a na reflexão. Então, o espectador pode ser tudo, menos "receptor", posto que o que ele faz diante da obra é tomar lugar na emissão. Esta seria, segundo a nossa leitura, a subversão propiciada pela arte e, por isso mesmo, a base de uma política da arte.
Cabe ainda notar que a operação de inclusão pressupõe, como vimos, a dissolução do traço material da obra, o que significa a desconsideração de sua materialidade como dado “natural” na operação de leitura. Logo, junto com a sua materialidade, o caráter único da obra também é desconsiderado, dissolvendo a figura que sustentava a aura. Se o espectador permanece, porém, no âmbito da recepção, não toma lugar na obra e, nesta medida, não chega à dimensão da obra enquanto arte – a despeito, sublinhemos, de ser ela reprodutiva ou não. Portanto, a "perda da aura" não depende unicamente da reprodução técnica. O que ocorre nesta esfera é a possibilidade de uma política da arte num plano massivo e, com ela, a possibilidade de maior propagação da emancipação crítica da arte e não a emancipação da massa que a consome.
A Indústria Cultural
É exatamente o otimismo de Benjamin diante da possibilidade de emancipação da massa frente à arte reprodutiva que Adorno e Horkheimer (1985) refutam ao demonstrar que a massa é produzida, sobretudo pela mercadoria cultural. Isto se dá, na indústria cultural, a partir do seguinte encaminhamento. A uniformidade estética da mercadoria cultural (a serialidade não está apenas no nível quantitativo, mas no qualitativo também) é o resultado de um controle rigoroso da produção (controle este que não se apresenta explicitamente como censura, mas como argumento técnico, revelando aí o caráter ideológico da técnica nessa esfera da produção) visando a dois pontos específicos e articulados entre si, a saber: (1) uma rígida classificação das mercadorias que se espelha na massa, e (2) a subdivisão da massa em categorias de consumidores que encarnam ideais de posição e ascensão social porquanto espelham a classificação das mercadorias (que consomem e que desejam consumir).
As distinções enfáticas que se fazem entre os filmes das categorias A e B, ou entre as histórias publicadas em revistas de diferentes preços, têm menos a ver com seu conteúdo do que com sua utilidade para a classificação, organização e computação estatística dos consumidores. Para todos algo está previsto; para que ninguém escape, as distinções são acentuadas e difundidas. O fornecimento ao público de uma hierarquia de qualidades serve apenas para uma quantificação ainda mais completa. Cada qual deve se comportar, como que espontaneamente, em conformidade com o seu level, previamente caracterizado por certos sinais, e escolher a categoria dos produtos de massa fabricados para o seu tipo (ADORNO e HORKHEIMER, 2006, p. 101-102)
Mas, o que é mais significativo para o que procuramos encaminhar, o espelhamento entre consumidor e mercadoria, a aceitação da massa em relação aos produtos da indústria em geral a partir da mercadoria cultural, é fruto do deslocamento da aura do objeto único para o semelhante segundo o imaginário produzido pela indústria cultural. Isto se dá na medida mesma em que o valor relativo de uma mercadoria, qualquer que seja ela, para o indivíduo que a consome é dado não pela experiência (o valor de uso efetivo, que no caso das obras de arte seria a fruição estética), mas pela crença na satisfação que ela possa lhe proporcionar. A crença ancora-se na imagem simulada de satisfação no enredo dos produtos da indústria cultural.
É, portanto, na expectativa hedonista que reside talvez um dos traços mais característicos da cultura atual. O hedonismo contemporâneo é efeito do investimento do desejo na crença que tem como núcleo a expectativa de satisfação proporcionada pela mercadoria. O que se aspira na mercadoria é a satisfação, o gozo, que se crê que ela irá proporcionar, gozo cuja intensidade é proporcional ao valor de mercado dos produtos. Este indicativo de gozo é construído e trabalhado pela indústria cultural nas suas diferentes modalidades, sendo ela própria apreendida a partir da mesma promessa de satisfação.
É disso que a estética da indústria cultural procura dar conta: a demanda hedonista, na forma do espetáculo (DEBORD: 1997). Este último vem impregnando todos os setores da sociedade, desde a política, passando pelas vitrines e a decoração kitsch do shopping center, até as práticas sexuais, impregnadas de produtos que vão do velho espartilho às algemas e imagens geradas em tempo real e passam por uma infinidade de cosméticos e de produtos que atuam mais diretamente sobre o desempenho sexual do ponto de vista físico. Antes mesmo do fenômeno da internet, e para além dele, a uniformização da indústria cultural chegou, via espetacularização, ao que possa haver de mais íntimo – fazendo mesmo a ideia de intimidade parecer alguma coisa remota e sem sentido.
A estética do espetáculo apoia-se, antes de mais nada, na imagem, a qual, dentro do princípio de uniformização da indústria cultural, é trabalhada segundo procedimentos calculados e pré-definidos que têm no efeito, na performance mensurável, a sua finalidade.
A imagem na indústria cultural é exatamente o termo sobre o qual se quebram ou se dissimulam as tensões entre a "ficção sem sonho" do filme e da novela de TV e a realidade, tendo como elo a mercadoria e as redes de serviços. Desde o desenho animado infantil ao filme adulto, um sem número de produtos reproduz a roupa, o automóvel e todos os demais acessórios que cercam as personagens, permitindo ao indivíduo "encontrar-se" pela identificação direta com o filme, desde o cenário até sua própria imagem pessoal. Através da mercadoria, os espectadores aspiram chegar ao gozo visto no filme.
Temos, porém, que os traços identitários do ser humano são de caráter eminentemente ficcional, mas passam por naturais. É essa crença na “natureza” da própria identidade que constitui o núcleo talvez mais resistente da ideologia nos indivíduos. Ora, na medida em que tal identidade é denegada à unidade ficção-realidade na mídia e que é nos produtos cujo valor é vinculado ao enredo e às personagens que a mesma mídia constrói, é através da recriação desse enredo e da reprodução dos traços imaginários desses personagens que o indivíduo pode “habitar” o imaginário da mídia. No plano mais imediato, ele o faz através dos produtos, mas com o desenvolvimento das biotecnologias, o imaginário da indústria cultural pôde chegar à imagem do próprio corpo. Assim, para além das cores dos cabelos, da maquiagem, dos gestos e das expressões, os traços que sustentam o desejo de semelhança chegaram ao delineamento da musculatura e, ainda, ao próprio desenho do rosto, do busto etc. Tudo isso é produzido nos salões de beleza, nas academias de ginástica e dança, em casa diante do espelho, nos consultórios médicos e centros cirúrgicos – toda uma gama de serviços especializados em tornar os indivíduos semelhantes a partir da imagem midiática.
O corpo tecnicamente produzido na e para a rede de consumo tende a diluir todo traço formal diferenciante, na medida em que se configura a partir dos modelos midiaticamente urdidos e postos à disposição da massa consumidora. A estética do corpo tornou-se o exercício exuberante da semelhança. O ideal de beleza corporal é dimensionado a partir do mesmo ideal estético da indústria cultural, destituindo de valor toda singularidade, com isto diluindo o topos social da diferença e inscrevendo o corpo na ordem unissexual da mercadoria. A aparente diferença configura-se na estetização estilizada que inscreve o indivíduo em segmentos de consumo, estando todos, porém, integrados na expectativa hedonista de satisfação e bem-estar e na crença de que é no mercado que darão conta dessa expectativa.
É proporcionalmente à expectativa hedonista que se configura a juventude como ideal estético do corpo, refletindo dissimetricamente o caráter perecível deste último. A angústia diante da morte é assim denegada na imagem da eterna juventude. O mesmo motivo que engendra a busca do corpo "perfeito" está por trás da redução da morte a pontos em mapas estatísticos, dos ciclos macabros de moda, da morte espetacular no filme e no noticiário, dos cemitérios ajardinados e com restaurantes, dos anúncios bem humorados de planos para enterros que são vendidos juntamente com planos de saúde e, o que talvez melhor delineie o que queremos aqui indicar, a gravação da imagem do morto deixando mensagens para os familiares vivos, numa versão kitsch da câmara mortuária egípcia. Isto indica um esforço vão de superação da morte pela imagem, redundando apenas em sua banalização. O corpo como dado material perdeu a aura, a qual se deslocou para a imagem do corpo ideal, ou seja, a imagem do corpo jovem. Isto revela o jovem auratizado da cultura atual como uma construção do adulto que busca uma imortalidade sem Deus.
E como isso se dá no âmbito da subjetividade? Entendemos que a questão reside no fato de que a recepção massiva consiste na identificação imaginária e não na reflexão. Ao identificar-se imaginariamente ao invés de tomar lugar na obra, o indivíduo deixa-se tomar pelos traços imaginários desta, assim produzindo-se como massa (trabalhadora e consumidora) em lugar de, poeticamente, emancipar-se de tal condição. Vemos, portanto, que a aura se deslocou do corpo da obra para a imagem do corpo na obra.
Aquele culto ao objeto único que Benjamin denunciara tornou-se o culto da imagem no objeto em série. Todavia, para além do problema estético que trabalhamos até aqui, esta questão de ser único coloca-nos diante da questão da situação mesma da vida humana em moldes, talvez, já aniquilados pelo tecnicismo, posto que a perecibilidade do corpo era exatamente o que nos punha o impasse da morte. Nos museus, por exemplo, a luta eterna para manter o "corpo" da obra de arte. É o contorno ao corpo que pretensamente se estabelece nas possibilidades de atuação sobre ele pelas técnicas de rejuvenescimento.
Porém, o que ocorre não é muito mais que o ocultamento do envelhecimento pela imagem, serial, do corpo, fazendo desaparecer no humano o sentido da formação biológica, o caráter imaginário do corpo enquanto coisa. É o ente querido visto e ouvido na imagem tecnicamente reproduzida que pretende tomar o lugar dos santos e querubins, maciços, estáticos e silenciosos, que guardavam o mistério da velha cova cantada por Augusto dos Anjos.
Referências Bibliográficas: 1. ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
2. BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica (in: Magia e Técnica, Arte e Política - Obras escolhidas vol. 1). São Paulo: Brasiliense, 1985.
3. ————. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 1999.
4. DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
5. MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
(A versão original deste texto foi publicada na revista CoolJornal, em maio de 2001).
*Marcelo Fonseca é artista visual, mestre em Letras e doutor em Artes (EBA-UFRJ). Professor da FACHA - Faculdades Integradas Helio Alonso.
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